Don't touch, it's drag!

As portas se abrem para receber os visitantes, ansiosos por uma gin tônica e pelo espetáculo principal. A luz ambiente, do Cabaré da Cecília, localizado no centro de São Paulo, faz com que existam apenas duas coisas no mundo: o som das conversas animadas dos amigos que se alojam próximos ao bar e aquele palco, o solo sagrado e iluminado como que por um milhão de luzes de todas as cores.

No ateliê repleto de espelhos, a artista completa sua metamorfose, finaliza sua tela com as últimas pinceladas de Rouge, sombras e batom, podendo, assim, terminar a bela obra de arte com uma gigantesca moldura loira e a encaminhar para a exposição. O frenesi toma conta de todos aqueles olhos curiosos, os presentes na casa se aglomeram como formigas na beirada do palco; a música começa; as cortinas se abrem... “And all that jazz”

This is ART

“Drag é uma expressão artística que joga com a nossa noção, entendimento e percepção de gênero. Qualquer coisa que vá nessa direção é Drag.”

- Rita Von Hunty, em entrevista ao programa Provoca da TV Cultura

O primeiro a se denominar Drag Queen foi William Dorsey Swann, uma pessoa negra, escravizada e não-binaria, nascida nos anos de 1850. Advindo de um povo africano onde não existia uma atribuição exatamente binária de gênero, William promovia bailes onde homens, em sua maioria negros, poderiam dançar livremente e desfilar com vestidos. A cultura daquele povo permitia que pessoas nascidas, como a visão eurocêntrica rotula como homens e mulheres, arrastassem suas saias para expressar cultura e arte. Foi em um desses bailes que Swann se proclamou, fazendo a história de uma “rainha de arrastar”, em inglês, “Drag Queen”.

Mas você acha que a arte drag nasce com William? Aí que você se engana. Desde o surgimento do teatro, na Grécia Antiga, onde as mulheres eram proibidas de pisar nos palcos, homens executam performances de gênero representando deusas como Atenas, Afrodite e Artêmis.

Outra possível origem para o termo vem do período elisabetano, de ninguém mais, ninguém menos que Willian Shakespeare. Assim como na Grécia Antiga, na Londres do século XVI, também não era uma prática aceitável que mulheres se apresentassem nos palcos do teatro. Esse papel, então, restava aos homens.

Era comum que nos folhetins fossem listados os nomes dos atores que interpretavam papéis femininos com uma observação ao lado: “D.R.A.G”, dressed resembling a girl” ou, em português, “vestido como uma menina”.

Born this way

“Eu nasci em 2015”, relata a drag Claire de Vênus.

“Eu estava participando de um processo teatral em que iríamos contar uma história de amor entre pessoas trans e decidi abrir espaço para um feminino que sempre existiu em mim. Eu sempre falo que minha drag nasceu num processo de exaustão por uma performance que não era minha, por medo que a sociedade nos impõe e pela violência que sempre existiu sobre nossos corpos. Estar performando como drag é potencializar a bicha que existe em você e eu já estava saturado de tentar me enquadrar. Por isso veio a Claire de Vênus.”

Criar uma drag queen pode parecer um trabalho simples, mas vai muito além de maquiagem e glitter. Gerar essa persona exige um gigante exercício de desconstrução interna e externa. A sociedade ainda faz com que esses corpos sejam marginalizados e ridicularizados por sua expressão artística. Dentro e fora de casa, a drag luta para quebrar preconceitos e construções sociais que nos são impostas desde o nascimento.

“Infelizmente a maioria da sociedade ainda não enxerga a Drag Queen como arte.”, é a opinião da drag Sammy Queen.

“Acham que [a arte drag] é só para se aparecer ou para a promiscuidade. Mas acredito que essa fase está passando, até porque temos artistas Drag Queens incríveis se destacando na TV.”

Drag? Elke Maravilha

Além de ser uma das maiores modelos brasileira, Elke Maravilha se provou uma excelente atriz, mas você sabia que ela também era drag quen? As perucas gigantescas, maquiagem carregadíssima e uma profusão de acessórios mostram isso. Ela começou a se montar na década de 70, quando passou a integrar um quadro na telvisão como jurada.

Fluir

Em São Paulo, no centro da maior metrópole do país, amigos, clientes e artistas se reúnem entre as noites dos finais de semana para apreciar um momento regado de performances e curtição. Inaugurada em 2021, no auge da pandemia da COVID-19, a Casa Fluida foi uma ideia desenvolvida pelo artista plástico Fernando Spaziani e o empresário Matheus Nahas. O bar, com temática LGBTQIA+, dá a oportunidade para artistas Drag Queens se apresentarem e desfrutarem do entusiasmo do público.

“Sou muito apaixonado pela arte drag e por mais que há muitos anos estejam em alta, elas têm pouquíssimos espaços, até mesmo em São Paulo, para performar. Normalmente se restringem a boates e festas”, conta o empresário Nahas.

Aberta de quinta a sábado, a Casa é a mistura entre o clássico e o moderno. O ambiente fluido e com painéis fotográficos de artistas irreverentes que influenciaram diretamente na abertura do espaço garantem uma noite com diversidade e representatividade. O bar conta com um terraço e uma galeria de exposições coletivas e individuais. Eventualmente, o espaço também recebe eventos teatrais, shows, sessões de fotos e manifestações culturais.

Glamour, brilho e fetiche.

Com identidade andrógina, a Drag Queen Gigi Moore é uma das artistas que se apresentam na Casa. Ela começou a se montar no fim de 2019, quando desistiu de fazer um curso pré-vestibular para o curso de Medicina. Na visão da performista, a arte está sendo muito mais reconhecida e apreciada do que antigamente. “Ainda tem um longo caminho pela frente, mas sem dúvidas de que hoje vivemos em um espaço muito mais livre e com mais possibilidades do que antes”, conclui Gigi.

O despertar

A folia carnavalesca é um marco consagrado da cultura brasileira. Bebedeira, curtição, fantasias e cores. Surgiu, então. A drag queen Juana.

A artista conta que se sentiu confusa durante um desfile de carnaval. “Eu estava curtindo e brincando no carnaval e senti que aquilo [arte drag] era uma coisa que me interessava e que eu queria levar em outros momentos da minha vida. Era uma urgência, uma necessidade pessoal”, diz.

Com mais de seis mil seguidores nas redes sociais, Juana vive da arte drag com apresentações em concertos, teatros, bares e shows.

O despertar da drag Johann foi recente. Um mês antes da pandemia do coronavírus impor medidas sanitárias, ela conta que foi para uma balada, se montou como drag queen e gostou.Para ela, a maior dificuldade atual é para fechar a agenda de shows e conseguir oportunidades.

O conceito de Johann é inspirado no feminino e na mãe da artista. “Depois de um tempo, comecei a buscar inspirações em mulheres que sempre foram à frente da sua geração. A minha referência é o poder da mulher e a sensualidade”, diz.

Atualmente, a renda da drag queen é composta pelo que recebe nos shows e performances. “Eu sinto que vai ser um caminho muito árduo para conquistar o que eu quero e chegar onde eu quero. Estou muito feliz e começo uma carreira de forma privilegiada vivendo da minha arte. Eu pago minhas contas com ela”.

Os planos da artista para o futuro vão muito além dos palcos. Moore quer crescer cada vez mais, lutar para criar espaços e oportunidades para a sociedade LGBTQIA+ e viajar mundo à fora levando a arte por todos os cantos.

"Bus, club, another club, another club, plane, next place, no sleep, no fear..."

- Lady Gaga

Drag? David Bowie

O camaleão do rock foi um cantor, compositor, ator e produtor musical britânico. E drag? Sim! Suas maquiagens e roupas extravagantes, coisas socialmente consideradas femininas, faziam com que o astro desempenhasse uma performance, além de musical, também, de genêro.

Charisma, uniqueness, nerve and talent

Em fevereiro de 2009, estreava um programa de TV que iria revolucionar a cena drag de maneira histórica. RuPaul´s Drag Race foi idealizado, criado e apresentado pela drag queen norte americana RuPaul. O reality show fez um sucesso estrondoso em todo mundo e se tornou o mais premiado do gênero, servindo de inspiração e referência para milhares de artistas.

O programa Amor & Sexo, da Rede Globo, foi responsável por difundir a cultura drag brasileira por todo território nacional. Fernanda Lima invadia a casa dos brasileiros toda sexta feira. Com seu palco repleto do que viriam a ser as grandes representantes do cenário atual. Dando espaço para Pabllo Vittar, Gloria Groove, Aretuza Love, Lorelay Fox e varias outras queens, o programa possibilitou que a arte chegasse em todas as casas do Brasil. "O meu maior presente foram todas as portas que o programa abriu pra mim.” - Disse Pabllo Vittar em entrevista ao GShow

É Vittar, mainha

Dj, toca o som, porque ela chegou pra fazer história. Pabllo Vittar é, atualmente, a drag mais seguida do Instagram, com a marca de 12 milhões de seguidores. O maranhense, Phabullo Rodrigues da Silva, que deu luz à queen mais famosa do Brasil começou a cantar no início da adolescência, mas só estourou no país todo quando lançou seu primeiro single “Open Bar”. A faixa utiliza o sample da música "Lean On" de Major Lazer & DJ Snake misturada com ritmos brasileiros e é coroada com a voz de Pabllo. A artista também ganhou grande visibilidade nacional quando integrou a banda do programa Amor & Sexo, da Rede Globo, em 2016.

Depois da sua saída do programa, Vittar lançou seu primeiro álbum “Vai Passar Mal” de onde emplacou os hits “K.O. ” e “Corpo Sensual” . Daí pra frente, Pabllo chegou arrastando tudo e quebrando cada vez mais recordes. Esses que a levaram a pisar esse ano (2022) no palco de um dos festivais de música mais famosos do mundo, o Coachella.

Quando perguntada pela revista Época, a queen contou que passou a conhecer e entender melhor o mundo drag quando teve o primeiro contato com RuPaul’s Drag Race, apresentado por um namorado. “Foi uma surpresa, não conhecia esse lado da arte drag. Fiquei apaixonada! Falei: eu posso ser isso aí” e revelou que “Foi uma libertação. Quando estou estressada, me monto e externalizo coisas que não consigo falar, mas que posso transmitir por meio da maquiagem e da produção. ”

Quem é essa menina da vermelho?

Nascido e criado na zona leste de São Paulo, Daniel Garcia, a nossa Gloria Groove, é, além de drag queen e cantor, compositor, rapper, ator e dublador. Tendo como maior inspiração sua mãe, Gina Garcia, cantora e backing vocal do grupo de pagode Raça Negra, Daniel iniciou sua carreira com apenas 6 anos, participando de comerciais. Integrou uma formação do grupo Turma do Balão Mágico, participou do Programa Raul Gil e até fez uma novela na RecordTV.

Gloria Groove nasceu em 2014. Também inspirada por RuPaul, a GG foi outra queen a integrar o elenco do programa Amor & Sexo, em 2016, sendo madrinha no quadro Bishow.

Ainda no ar na Rede Globo, Gloria lançou seu primeiro single Dona e logo depois veio seu álbum Proceder, com sucessos como Muleke Brasileiro e Gloriosa, mas foi só em 2018 que GG se consolidou, explodindo com seu maior hit até então: Bumbum de Ouro.

Passeando por ritmos que vão além do pop, como rapp e o R&B, a Lady Leste deu o nome como uma das maiores artistas nacionais da atualidade, chegando a mais de 900 mil visualizações no seu canal do Youtube.

Oportunidades

Em uma conversa com a Revista Voz, o sócio e fundador da Casa Fluída, Matheus Nahas, dá mais detalhes do projeto e conta os planos para o futuro do espaço.

- Quem é Matheus Nahas?

“Sou um professor de química pré-vestibular que resolveu se aventurar no ramo da noite paulistana devido à minha paixão pela noite, pelas festas, bares e arte em geral.”

- De onde surgiu a ideia de criar um bar com temática LGBTQIA+?

“Meu sócio, Fernando Spaziani, é artista plástico e tinha um ateliê na Vila Mariana, onde fazíamos exposições de artistas e reuníamos amigos em festas e aberturas de exposições. Durante a pandemia, começamos a pensar o porquê de não levarmos essa diversão para um ponto comercial, em que pudéssemos também ganhar alguma grana com isso. Foi assim que começamos a desenhar a Casa Fluida, um espaço de arte que também funciona como um barzinho, onde os clientes podem vivenciar a Experiência Drag e assistir à performances artísticas.”

- De onde veio o nome “Casa Fluida”?

“Nós sempre sabíamos que o nome seria Casa “alguma coisa”, porque enquanto estávamos reformando, falávamos: Vamos lá visitar a Casa… Precisamos comprar algo pra Casa… Um dia, em um show da Filipe Catto, que tanto gostamos, ela falou sobre fluidez, sobre o mundo fluido e aí olhamos um para a cara do outro e falamos: Casa Fluida!”

- Como empreendedor, quais foram as maiores dificuldades para criar o projeto desse tipo de estabelecimento?

“Em meio à pandemia, sem sombra de dúvidas foi o receio das pessoas não comprarem nossa ideia, além dos preços exorbitantes de tudo, as burocracias inerentes a qualquer tipo de empresa e os impostos, que dificultam empreender no Brasil.”

- Como é o mercado LGBTQIA+ no Brasil, em sua opinião?

“Pelo menos em relação ao nosso público, tem uma parcela bem fiel, que abraça a ideia junto com a gente, que está sempre com a gente, consome nossas ideias, consome arte. É um público bastante engajado em causas que acreditamos também.”

- Qual seu sentimento ao dar espaço para que artistas drags independentes possam performar na Casa?

“Sou muito feliz quanto a isso. Sou apaixonado pela arte drag e, por mais que há muitos anos esteja em alta, elas têm pouquíssimos espaços, até mesmo em São Paulo, para performar. Normalmente os espaços se restringem a boates, festas, e mesmo assim é um círculo muito fechado. Além do mais, nós damos à drag o status de arte mesmo, que muitas vezes não é reconhecido.”

- Como foi a recepção da sociedade em relação ao projeto da Casa Fluida? Houve preconceito?

“Estamos tendo uma resposta maravilhosa! Muitas pessoas nos falam que sentiam falta de um barzinho gostoso pra sentar, que pudessem apreciar arte nas exposições, assistir à shows no conforto da sua mesa, reencontrar amigos, paquerar… Até o momento não tivemos nenhum tipo de preconceito.”

- Quais são seus planos para o futuro do bar?

“No momento, estamos empenhados em firmar o nosso nome em São Paulo e planejando para setembro a primeira festa da casa: Casa Fluida - A Festa, que vai comemorar o primeiro aniversário nosso.”

- Qual sua relação com as drag queens?

“Em primeiro lugar, de extremo respeito e admiração. Me sinto bem ao lado delas, ouvindo suas histórias. Muitas vezes saio do papel de contratante e me vejo como um fã, como sempre fui. Algumas hoje são amigas, é uma relação fantástica.”

Don't touch, it's drag!

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