Crônica

Lembro-me da primeira vez que à vi. Já eram dez para as nove quando decidi, diferente de todos os dias, me sentar na garagem de casa para ler o meu jornal. Meu querido leitor deve estar se perguntando porque exatamente naquela manhã de terça-feira decidi mudar uma rotina que se estendia a mais de um ano, mas o personagem principal desta história (vulgo eu) te diz que nem ele o sabe, nem lhe importa. Me sentei em uma cadeira de plástico velha, tomei o jornal em mãos e acendi um cigarro. Saiba por mim, caro leitor, que odeio incentivar tais maus hábitos, como o fumo, coisa que apendi em minha mocidade, mas sinto que devo relatar essa história com máxima verossimilhança, continuemos... Algo naquele jornal não me prendia a atenção. Talvez o problema fosse o jornal, talvez o problema fosse eu. Me contentei em observar a rua então. O vosso narrador confessa, tristemente, que se percebeu ficando velho a partir do momento em que o simples fato de observar a rua se tornou uma atividade muito prazerosa. Pessoas vão, pessoas vem. Palavras cortam o vento como os pássaros cortam o céu. Eis que me dou conta de uma cena que me prende muito a atenção. Do outro lado da calçada avisto uma senhora. Creio eu que, no papel, tinha mais de oitenta anos, mas quando se trata de aparência, fazia inveja à Matusalém. Trazia duas pesadas sacolas de pano nas mãos. Estas quase arrastavam no chão, de tão corcunda que a velha era. Porém, diferente de todas as pessoas que passaram por mim naquela manhã, aquela velha olhou pra mim e sorriu. Um sorriso amarelo, com uma dentadura frouxa. Prontamente me levantei da cadeira, abri o portão e me dispus a ajudar a velha. Cá uma atitude curiosa, amigo leitor, mas o narrador que vos fala não é uma pessoa de gentilezas. Papeamos todo o caminho até a casa da velha. Lenta e de fala mansa, aquela velha me contou toda sua vida. Falava como se a canastra de Pandora nunca tivesse sido aparta. Não nascera aqui, em sua escassa e rouca voz, se notava a língua de Camões. Naquele dia aprendi tantas coisas. Tais quais aquelas folhas cinzas que abandonei no chão da minha garagem jamais poderiam me contar.

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